Tragédia da Lagoa: como aconteceu o acidente que matou 35 pessoas em um dos cartões-postais de João Pessoa?
50 anos da Tragédia da Lagoa: como aconteceu o naufrágio que matou 35 pessoas? Era o fim da tarde de um domingo, no dia 24 de agosto de 1975. Crianças e adul...

50 anos da Tragédia da Lagoa: como aconteceu o naufrágio que matou 35 pessoas? Era o fim da tarde de um domingo, no dia 24 de agosto de 1975. Crianças e adultos embarcaram em uma balsa militar, que fazia parte das atrações da Semana do Exército, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Era o último passeio da embarcação naquele dia. Tudo corria normalmente até que a água começou a invadir o barco. A balsa, que deveria suportar até um tanque de guerra, não resistiu: afundou diante dos olhos de uma multidão e deixou 35 mortos, sendo a maioria deles, crianças. Documentos históricos e relatos de testemunhas ouvidas pelo g1 e TV Cabo Branco resgatam a história do naufrágio militar que marcou para sempre a história de um dos principais 'cartões-postais' de João Pessoa. Parque Solon de Lucena, no Centro de João Pessoa Grace Vasconcelos/g1 O dia da Tragédia da Lagoa Era o segundo ano do governo de Ernesto Geisel, durante a ditadura militar, e as comemorações da Semana do Exército aconteciam no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Entre as atrações oferecidas ao público, civis podiam embarcar em uma portada militar M-2, um tipo de balsa, para um passeio pelas águas da lagoa. O advogado Inaldo Dantas morava em uma casa na esquina do Parque Solon de Lucena, aos 14 anos. Ele chegou a passear na portada antes do acidente e lembra que os passeios aconteciam o dia todo, com os militares organizando o embarque e colocando as pessoas nos barcos. Em seguida, a portada M-2 passeava em movimento circular por toda a lagoa. No dia 24 de agosto de 1975, a portada fazia o último passeio programado, e estimava-se que mais de seis mil pessoas já haviam participado da atividade ao longo do evento. A embarcação era conduzida pelo sargento Edílio Basseto, do 7º Batalhão de Engenharia de Combate de Natal, no Rio Grande do Norte, de onde também foi trazida a embarcação militar. Foto da portada M-2, publicada dias antes da tragédia no extinto Jornal O Norte Reprodução/O Norte/Arquivo IHGP Segundo o Exército Brasileiro, no momento do naufrágio, havia entre 100 e 120 pessoas a bordo da portada. Famílias inteiras participavam da atividade na embarcação, que não contava com coletes salva-vidas e apenas um bote inflável fazia a segurança dos participantes. O mecânico aposentado João Bosco de Andrade, de 70 anos, lembra que havia muita gente na portada militar e que faltava pouco para a água entrar no barco em que ele estava, até que uma pequena onda o atingiu. Na época, ele tinha apenas 20 anos. "Eu me lembro bem que o povo começou a se afastar assim, para não se molhar, né? Eu me lembro que ela (a embarcação) levantou. Aí, quando o barco levantou, eu pulei [...] Eu lembro que teve um que disse: 'Rapaz, tem muita gente, viu?' Mas tava tudo normal, e tudo isso aconteceu em questão de segundos. Foi ligeiro mesmo", afirmou João Bosco. João Bosco conta que não houve tempo para pensar em nada. Começou a nadar, foi retirado da lagoa, colocado em uma ambulância e levado a um pronto-socorro da cidade. Perdeu as roupas e a bolsa que carregava, ficando apenas com a calça que vestia. Mutidão assistiu resgate de corpos na lagoa do Parque Solon de Lucena, em João Pessoa Reprodução/O Norte/Arquivo IHGP O jornal A União relata que, imediatamente, civis e militares pularam na lagoa e iniciaram os salvamentos. Naquele dia, os mergulhadores do Exército e do Corpo de Bombeiros trabalharam durante a madrugada no resgate dos corpos. Cerca de 50 homens de unidades militares participaram da ação. A rotina da cidade também mudou depois do acidente. Nos dias seguintes, centenas de pessoas passaram a se reunir no gramado da lagoa para acompanhar o trabalho dos militares e o resgate dos corpos, mesmo quando as atividades estavam suspensas. Os carros tinham dificuldade para trafegar na região, já que, na época, o trânsito ainda ocorria no anel interno do parque. Com a repercussão do caso, as comemorações finais da Semana do Exército foram canceladas. Logo depois, também cancelaram o desfile cívico do dia 7 de setembro, nas comemorações da Independência do Brasil. Um luto de três dias foi decretado na cidade. Centenas de pessoas se reuniram no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa, após tragédia que terminou com 35 mortos Reprodução/Jornal O Norte/Arquivo IHGP Quais foram as causas do naufrágio na Lagoa de João Pessoa? O Exército Brasileiro instaurou um inquérito militar para investigar as causas do acidente. Antes mesmo da conclusão do relatório, os militares já negavam que o excesso de peso teria causado o acidente, garantiram que todas as normas de segurança foram seguidas naquele dia e que os resgates começaram imediatamente. Segundo o relatório final do inquérito, o naufrágio foi causado por um "início de pânico" nos botes dianteiros da portada, que ocasionou uma movimentação desordenada dos civis. “O grande número de vítimas deve ser creditado à existência de muitas crianças e mulheres entre os ocupantes da portada e ao pânico generalizado que se manifestou por ocasião do naufrágio”, afirmou o relatório. Relatório do inquérito militar sobre a tragédia da lagoa foi concluído em setembro de 1975 g1/Grace Vasconcelos/Arquivo Justiça Federal Dois militares ouvidos afirmaram que moças que estavam no barco dianteiro faziam "certa algazarra", foram advertidas e se calaram. Quando a portada se deslocou, novos gritos de mulher foram ouvidos, mas em tom de brincadeira. "Logo que a portada se deslocou, foram ouvidos gritos de mulher, provavelmente as mesmas moças a que nos referimos anteriormente, mas em tom de brincadeira, que de alarme, por causa dos jatos d'água que estavam entrando por cima da borda da portada, que continuou a avançar, fazendo uma curva à esquerda, bastante ampla, em torno de um chafariz existente dentro da lagoa. Logo em seguida, houve gritos e confusão generalizada nos botes dianteiros, a partir do dianteiro esquerdo", registrou o inquérito. Segundo o documento, os civis começaram a levantar dos seus lugares e a se movimentar, causando um desequilíbrio da portada. A água teria passado a entrar em grande quantidade por cima das bordas do bote esquerdo dianteiro, que encheu rapidamente e se espalhou pelos demais botes em poucos segundos. O relatório também afirma que muitas pessoas se jogaram na água. O caso não foi considerado crime militar, nem transgressão disciplinar. O inquérito concluiu também que não houve falha material, que a portada estava em boas condições e foi utilizada dentro dos limites de carga; que o condutor da embarcação tinha experiência e que não foi imprudente ou negligente em qualquer momento; e que a tripulação agiu rápido no salvamento das vítimas. O Exército Brasileiro foi procurado pela Rede Paraíba de Comunicação para conceder entrevista, mas não aceitou. Também foi solicitada uma resposta por meio de nota, mas até o momento não obtivemos retorno. Como era a embarcação que naufragou? Passeio na portada M-2 começou dois dias antes da tragédia em João Pessoa Reprodução/Jornal A União/Arquivo do IHGP A portada M-2 foi trazida de um batalhão do exército do Rio Grande do Norte. Uma foto do Jornal A União mostra que a estrutura central era retangular e tinha alguns botes auxiliares nas laterais, onde ficavam as crianças e suas famílias. Na imagem, que foi publicada no dia anterior ao acidente, é possível ver muitas crianças nos botes. No centro da portada, estavam militares e comandantes do Exército brasileiro. Veja imagem acima. O Exército afirmou que a embarcação poderia suportar até oito toneladas em água corrente, podendo dobrar o peso em água parada, e que não teria ocorrido excesso de peso no dia do acidente, já que a portada poderia suportar tanques de guerra. Bote militar que fazia a segurança dos civis na portada militar no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa Reprodução/O Norte/Arquivo IHGP A portada M-2 também não tinha coletes salva-vidas. O extinto jornal O Norte registrou que o Comando do 1º Grupamento de Engenharia afirmou que o uso do equipamento era obrigatório apenas para embarcações civis. No caso da portada, estaria “subordinada aos manuais técnicos militares do Exército, que instruem fartamente o pessoal capacitado sobre a maneira de agir em casos de sinistro”. Durante as investigações, militares que participaram dos passeios relataram que a travessia seguiu o mesmo padrão das anteriores, sem qualquer alteração perceptível. Crianças, famílias inteiras e um sargento-herói O motorista Hermes da Fonseca e as vítimas da tragédida da lagoa marcam a página do extinto Jornal O Norte Reprodução/Jornal O Norte/Arquivo da Justiça Federal Ao todo, 35 pessoas morreram no acidente da tragédia da lagoa, no Parque Solon de Lucena. Entre os mortos estavam 20 crianças de até 12 anos e quatro adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos. A tragédia também vitimou 11 adultos, sendo seis mulheres e cinco homens. A embarcação era conduzida pelo sargento Edílio Basseto, de 30 anos. Era o segundo ano em que ele realizava o passeio na lagoa do Parque Solon de Lucena e, segundo o inquérito militar, teria sido o responsável por escolher as pessoas que subiriam ao barco. Ele também morreu no acidente. Outros dois militares também se afogaram na lagoa, entre eles Reginaldo Calixto da Silva, que conseguiu salvar cinco pessoas e, em seguida, se afogou após perder as forças para retornar à margem. Ele estava casado há apenas 1 mês. Processo da Justiça Federal registra nomes e idades das vítimas da tragédia da lagoa Grace Vasconcelos/g1/Arquivo da Justiça Federal Estado indenizou famílias das vítimas da Tragédia da Lagoa? As ações movidas pelos familiares das vítimas só foram iniciadas na Justiça Federal três anos após o acidente. Segundo o órgão, as famílias tentaram receber indenizações do Governo Federal, mas não conseguiram e recorreram ao judiciário. A primeira ação foi movida em 1977, e outras duas foram iniciadas em 1980. As famílias entraram com processos com o objetivo de responsabilizar a União pela morte de parentes no desastre. Hermes da Fonseca, que perdeu a esposa e os três filhos, foi o primeiro a acionar a Justiça Federal, em 1977, e a União foi condenada a pagar pensões pela morte dos quatro familiares dele. Esse processo tramitou até o ano 2000, totalizando 23 anos. Além de Hermes, outras 15 famílias também recorreram à Justiça e conquistaram o direito a pensões alimentícias, além dos valores retroativos correspondentes ao período entre a data do acidente e a implantação das mensalidades. Processo judicial que indenizou famílias de vítimas da tragédia na lagoa de João Pessoa Grace Vasconcelos/g1 Segundo a Justiça Federal, o segundo processo foi arquivado em 1996, após 16 anos de tramitação, e reuniu 13 famílias. Já o terceiro teve baixa em maio de 2011, e é o mais longo, durando 31 anos. A Justiça Federal afirma que a demora processual foi causada pelo rumo que as ações tomaram: os autores principais foram substituídos por seus herdeiros em algum ponto do processo judicial, o que demanda tempo para reunir os envolvidos, realizar intimações, habilitações e manifestações das partes. Os três processos foram desarquivados em 2011, pela Comissão de Gestão Documental da Justiça Federal, por causa da sua importância histórica e em homenagem à própria história da instituição na Paraíba. Hoje, parte do processo está exposta no Memorial da Justiça Federal, na sede em João Pessoa, que tem entrada gratuita. Memorial da Justiça Federal da Paraíba preserva a história da tragédia da lagoa Grace Vasconcelos/g1 Vídeos mais assistidos do g1 Paraíba